quarta-feira, 11 de junho de 2014

O Mocho II: O Pardal e o Mocho




Próximo daquela floresta há um cemitério. Há um cemitério com tumbas de idéias que se foram e animais que já partiram.
            E eu, o mocho, quis olhar de cima aquele lugar. Sai naquela manhã enquanto o grande espírito vivo e amarelo aparecia aos poucos do horizonte e clareava o lugar. Digo espírito, pois sei que aonde chega o espírito movente a tudo ilumina.
            De cima vi e do alto vi uma cruz. E por cima da cruz ele estava, estava em cima da cruz que era de concreto. E era ele, o pardal. E nesta cruz de concreto havia um homem de bronze. Não o conhecia, mas estava nas cruzes do cemitério.
            Disse:
            - Que fazes, oh pequeno pardal? Por que estais a cantar em cima de uma cruz de concreto com uma peça de bronze em sua fronte?
            - Ofende-me grande pássaro noturno! Como criatura da noite que és não pode entender a vida. Este homem morreu por mim! Assim contam as histórias dos antigos e é vivo como dizem!
            - Não compreendo o porquê de te ofenderes. -disse o mocho- Como pode dizer que é homem este bronze e ofender-se se eu disser o contrario? “Homem” não é apenas a forma que deram a este bronze? Uma imagem?
            - Tenho fé, mocho! E não cabe entre nós argumentar! – falou o pequeno acalmando-se – Entre teus pensamentos e minha fé há um abismo. Um abismo tal que seria trabalhoso juntar e contigo fazer alguma ponte.
            - Hmmmm... E tu sabias que a razão pode devorar uma fé tão pequena, a fim de poder haver crendices mais elaboradas até?
            - Não, mocho! – disse o pequeno escondendo-se por detrás da cruz – A cruz me protegerá. Por detrás dela não me alcanças e não poderia devorar a mim e nem mesmo a minha fé!
            - Não te percebes que quando te escondes não me vês? Assim posso ir por cima desta cruz pulando-a para pegares! Mas não o farei ainda... Pois não me respondeste.
            O pardal olhou o mocho, e suspirou. Depois de um curto silencio disse:
            - Aqui há uma cruz de concreto e esta cruz de concreto é estática. Na cruz vês um homem de bronze, mas não é um homem... É o espírito vivo. Não... É a própria vida! Muitos pardais o veneram e muitos esperam  a sua volta.
            - Tolo! – Disse eu, o mocho – Como pode esperar a volta de alguém que se foi? O grande espírito nasce e morre o mesmo todo o dia lá no alto e nem eu alcanço, mas isso com um homem? Sei que nascemos e morremos e a natureza nos melhora e conduz. Por isso um homem não pode voltar igual a ele mesmo!
            - Sim, mocho, a natureza nos melhora e sua força nos conduz, mas nós devemos nos desvincular dos instintos que ela nos colocou. Apesar de Ele nos ter criado e a natureza, sentimos nós que devemos sair desta e apenas a Cristo nos apegar.
            - Quê diz? Dizes tu que este nos criou e a natureza? – Disse o mocho inconformado – Tu não vês que contradição diz e como dizes contradição? Ninguém pode criar a natureza e os instintos e querer destruí-los! Deixes este Cristo de bronze e procuras o vivo para louvar! Crê na alma e olha a natureza e despertas!
            Nesta hora o pardal canta e uma musica de louvor canta o pardal. Mas, para o mocho é só ruído, pois pardais não cantam belamente como as andorinhas. O louvor era alto como um chamado a alguém distante.
            O mocho olha para o pardal e diz:
            - Pare de cantar, senão te devorarei! Não conheces razão!
            -Então continuarei a cantar, não me interessa a razão! – e continua o corajoso pardal.
            Quando o mocho levantou suas garras em direção ao pardal, com sua visão ao longe viu... Eram muitos... Muitos pardais.
            O mocho sabe que um pardal não pode machucá-lo, mas tantos de outras florestas...
            Chegaram e rodearam o mocho em seu vôo, parecendo um furacão de pardais. Todos cantando em coro aquele hino de louvor.
            - Não aguento! – Disse o mocho – não suporto ruídos tão altos! Estes sons... Ferem-me! Ferem-me os sons de uma multidão sem argumentação.
            E assim o mocho vai. Deixa-os louvando seu Cristo de bronze e vai para fora longe daquela tumba. E volta a sua toca.
            Diz o mocho:
            - E os pardais, como gesto de união até hoje se defendem sem defesa, mas um dia será aquele em que o pardal sucumbirá ou voará daquela cruz.
            Ele, o pardal, a fé, a esperança e o apelo ao invisível, o “crente”
            Eu o mocho.


quarta-feira, 4 de junho de 2014

O Mocho I



   A Lebre, o Gavião e o Mocho



       Há uma floresta em mim. E no tronco de uma arvore há um buraco, e este buraco é uma toca. A minha toca. Eu, o mocho, observo durante o dia o que se passa acolá, e do acolá eu observo.
            Há uma lebre. Uma lebre saltitante e alegre e branca como a água em neve. Eu, o mocho a observo. Eu a sinto, mas não me faço pressentir. Amo-a, pois há algo que me completaria: a felicidade, a invejo.
            Seus olhos têm brilho. Refletem a sua alma em luz. Sim... A lebre... (suspiro)
            O vi vindo do monte mais alto. Do monte mais alto vindo o vi. Aquele a quem lamento a existência... O gavião.
            Veio por sobre as nuvens e na altura do arco-íres ele voou.
            Seu esplendor e sua beleza a seduz. Seduz a lebre com seu ar de ordem e moral, e desta toca não o deixo de notar. Ele, o gavião.
            Cheio de heroísmo e convencimento, de razão e de conselhos. Ele parece correto. Parece correto o gavião.
            Ele pousa ao seu lado e a lebre lhe sorri. Ele olha penetrante mas as formas ele vê, pois nunca disse ver a alma em seus olhos. Tem boa visão para tudo o que há de fora e tudo o que há de fora ele vê, mas não vê o que há no escuro, o imanente, o escondido. Só alguém na floresta parece ver o interior e os segredos e procurá-los até na dor, aquele que vê no escuro e do escuro: eu, o mocho.
            O gavião a ilude, pois se ilude também o gavião. Pede para que ela olhe para cima e veja as nuvens. Imagina cenas das nuvens o gavião e pede para a lebre o acompanhar em seus sonhos. Olha para as nuvens e vê a beleza de tudo o que é celeste. Mal sabe que o seu celeste é ilusão e que logo se desfazem suas cenas.
            -Te defenderei até o fim- diz ela, mas quê é uma lebre para defender um rapinante? Ela poderia ser uma presa e nem se toca disso. Ambos somos caçadores: eu, o mocho e ele, o gavião.
            Em algo insiste, insiste em algo o gavião, pois aquele olhar sonhador e para cima esconde algo. Algo terrível para mim. Ele insiste em levá-la para as nuvens. Assim insiste o gavião.
            É admissível alguém que não voa não conhecer as nuvens do céu. É fumaça, vapor, ilusões para quem vê imagens. Mas eu sei o que ele quer! Quer prendê-la em sua toca ou ao menos levá-la para longe da floresta!
            A noite está chegando e sem seu sol ele pouco vê, pois só aparece no claro e para todos. Despede-se e vai... O gavião.
            Ah... A noite...
            É tão bela e a lebre se esconde e não a vê. Se pudesse de dia não faria como o gavião que quer subir com ela para ver nuvens e as ilusões do outro lado, mas subiria para de cima ver a terra e tudo o que há. Tudo o que é belo de dia o é também à noite, mas o que muda são os olhos de quem vê.
            Mas eu não sou igual ao gavião!
            Eu, o mocho, tenho raiva, tenho amor, sinceridade e não escondo o que há em mim, quando posso mostrar. Mas não querem ver o mocho, pois o mocho desilude, olha a noite como o dia. Por hoje estava na toca, mas a noite eu devo me mostrar e uma vez de dia também de sair para alcançar a desilusão.
            Ele, o gavião, são os valores, o ego, a honra, a cultura... a regra.
            Ela, a lebre, a felicidade, a inocência, a mulher e a criança, a ultima peça, a ultima vontade.
            E eu, o mocho.